Psiquiatra norte-americano Allen Frances
Milhões de pessoas sadias estão sendo prejudicadas com diagnósticos psiquiátricos equivocados e tratamentos desnecessários enquanto os que têm doenças mentais verdadeiras não têm acesso às terapias que precisam.
O alerta vem do psiquiatra norte-americano Allen Frances, 73, professor emérito na Universidade Duke, na Carolina do Norte (EUA), autor do livro "Voltando ao normal" (Versal Editores), recém-traduzido para o português.
Frances, que participa na quinta (15) de palestras no Rio de Janeiro sobre a sua obra, diz que a tendência atual é de uma sociedade em que todos, em algum momento, sofrerão de algum transtorno.
Sua crítica é centrada particularmente no DSM-5 (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), de 2013, um guia tido como a "bíblia da psiquiatria".
Frances liderou a versão anterior, o DSM-4, cuja diretriz foi tentar conter a inflação de diagnósticos, que já se espalhava na psiquiatria e na medicina em geral.
Folha - " O sr. diz que há uma tendência crescente de medicalização da vida, de excesso de diagnósticos psiquiátricos. Como voltar ao normal?
Allen Frances - Temos de aceitar que nem toda angústia humana é transtorno psiquiátrico e que não há uma pílula para cada problema. Muitas emoções e comportamentos são simplesmente parte da natureza humana.
Por exemplo: as pessoas no Brasil estão enfrentando neste momento muitos desafios na economia, na política, na saúde e nas questões sociais. Isso compreensivelmente causa angústia e ansiedade. Mas as soluções estão em melhores políticas, mais coesão social, menos corrupção e na nossa resiliência natural, não na medicalização desnecessária ou em pílulas mágicas.
Qual é a sua maior preocupação com o DSM-5? Corremos o risco de todos sermos considerados doentes mentais?
O DSM-5 expandiu ainda mais o que já era um sistema de diagnóstico muito vagamente definido. Tristeza normal, como o luto, por exemplo, torna-se transtorno depressivo maior; comer em excesso, torna-se transtorno da compulsão alimentar; ataques de birras de crianças podem se tornar "transtorno do temperamento irregular"; o esquecimento na velhice passa a ser transtorno neurocognitivo leve; e as crianças normais são diagnosticadas com déficit de atenção e hiperatividade.
Qual a influência que as grandes farmacêuticas exercem nessa tendência?
As multinacionais farmacêuticas não têm qualquer influência direta sobre as decisões do DSM, mas aproveitam qualquer oportunidade para criar novas desordens psiquiátricas. Se existir brecha no DSM para alguma coisa ser mal utilizada, isso vai acontecer. Eu acredito, por exemplo, que as farmacêuticas sejam as responsáveis por essas falsas epidemias de TDAH (transtorno do déficit de atenção e hiperatividade) e transtorno bipolar.
Como frear isso?
A indústria do tabaco foi domada quando o ultraje público se tornou mais poderoso do que seus grandes lobbies e patrocínios a políticos. A ganância das farmacêuticas está agora criando o mesmo tipo de indignação.
Essa nossa cultura hedonista, que busca o bem-estar a qualquer preço, também não tem participação nessa tendência?
Os maiores contribuintes para a "cultura da pílula" são as farmacêuticas, que empurram suas drogas, e os médicos descuidados ou com excesso de trabalho. Mas os pacientes também são responsáveis porque esperam uma solução medicamentosa rápida para os problemas da vida, que são complicados. A medicação psiquiátrica é essencial para tratar os verdadeiros problemas psiquiátricos, mas não são eficazes para os problemas cotidianos enfrentados pelas pessoas e pela sociedade. Um diagnóstico psiquiátrico preciso pode melhorar muito a vida de uma pessoa. Mas um impreciso provoca estigma e leva a tratamentos desnecessários.
O sr. diz que as pessoas que têm transtornos psiquiátricos graves estão sendo ignoradas. Como é isso?
Há um paradoxo preocupante. Gastamos muito dinheiro com tratamento para as pessoas normais, os "doentes de preocupação", que vão ser prejudicados por essas drogas, enquanto faltam recursos para quem está de fato doente e desesperado por tratamento. Dois terços dos que têm depressão severa não são tratados, e muitos dos que sofrem de esquizofrenia acabam na prisão ou nas ruas, sem moradia.
Remédios controlados são prescritos por médicos. Então, se há excesso ou má indicação, eles são responsáveis...
Os médicos precisam ser extremamente cautelosos na prescrição de quaisquer opiáceos ou benzodiazepínicos. Ele podem fornecer alívio de curto prazo da dor e da ansiedade, mas com enorme risco de morte e invalidez.
São crescentes os diagnósticos de doença mental em crianças. Elas estão mais perturbadas do que eram antes ou há excesso de diagnóstico?
A natureza humana é constante, os hábitos de diagnóstico é que são muito inconstantes. As crianças são as mais difíceis de diagnosticar porque elas mudam muito de semana para semana e respondem fortemente a circunstâncias externas.
O diagnóstico deve exigir um longo período de observação, muitos informantes, e tentativas de aconselhamento antes de considerar a medicalização.
Folha
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