Cruz
Se os Pais gregos primitivos representavam a cruz primariamente como uma “satisfação” ao diabo, no sentido de ser o preço do resgate que ele exigiu e que lhe foi pago, e os Pais latinos viam-na como uma satisfação da lei de Deus, Anselmo de Cantuária, no décimo primeiro século, deu-lhe um tratamento novo em seu Cur Deus Homo? Fazendo uma exposição sistemática da cruz como uma satisfação da honra ofendida de Deus.
(John Stott; A Cruz de Cristo; Vida; pp. 106)
“Deus nada devia ao diabo a não ser castigo”. Deveras, o homem devia algo a Deus, e essa é a dívida que necessitava ser paga. Pois Anselmo define o pecado como “não dar a Deus o que lhe é devido”, a saber, a submissão de toda a nossa vontade a ele. Pecar, portanto, é “tomar de Deus o que é dele”, o que significa roubar dele e, assim, desonrá-lo.
(John Stott; A Cruz de Cristo; Vida; pp. 107)
A cruz de Cristo “é o evento no qual Deus simultaneamente torna conhecida sua santidade e seu amor, em um único evento, de um modo absoluto”.
(John Stott; A Cruz de Cristo; Vida; pp. 118)
O que vemos, portanto, no drama da cruz não são três actores, mas dois, nós mesmos de um lado e Deus, do outro. Não Deus como ele é em si mesmo (o Pai), mas Deus, entretanto, Deus-feito-homem-em-Cristo (o Filho). (...) ao dar o seu Filho ele estava dando a si mesmo. (...) Como disse Dale: “a misteriosa unidade do Pai e do Filho tornou possível que Deus ao mesmo tempo sofresse e infligisse sofrimento penal”. (...) A cruz foi um acto simultâneo de castigo e amnistia, severidade e graça, justiça e misericórdia.
(John Stott; A Cruz de Cristo; Vida; pp. 143)
Rejeitamos fortemente toda a explicação da morte de Cristo que não possui no centro o princípio da “satisfação através da substituição”, em verdade, a auto-satisfação divina através da auto-substituição divina. A cruz não foi uma troca comercial feita com o diabo, muito menos uma transacção que o tenha tapeado e apanhado numa armadilha; nem um equivalente exacto, um quid pro quo que satisfizesse um código de honra ou um ponto técnico da lei; nem uma submissão compulsória da parte de Deus a uma autoridade moral acima dele da qual ele, de outra forma, não poderia escapar; nem um castigo de um manso Cristo por um Pai severo e punitivo; nem uma procuração de salvação por um Cristo amoroso de um Pai ruim e relutante; nem uma acção do Pai que deixasse de lado a Cristo como Mediador. Em vez disso, o Pai justo e amoroso humilhou-se, tornando-se em seu Filho unigénito e através dele carne, pecado e maldição por nós, a fim de remir-nos sem comprometer o seu próprio carácter. Necessitamos cuidadosamente definir e salvaguardar os termos teológicos “satisfação” e “substituição”, mas não podemos, em circunstância alguma, abrir mão deles. O evangelho bíblico da expiação é Deus satisfazendo-se a si mesmo e substituindo-se a si mesmo por nós.
Pode-se dizer, portanto, que o conceito da substituição está no coração tanto do pecado quanto da salvação. Pois a essência do pecado é o homem substituindo-se a si mesmo por Deus, ao passo que a essência da salvação é Deus substituindo-se a si mesmo pelo pecado. O homem declara-se contra Deus e coloca-se onde Deus merece estar; Deus sacrifica-se a si mesmo pelo homem e coloca-se onde o homem merece estar. O homem reivindica prerrogativas que pertencem somente a deus; Deus aceita penalidades que pertencem ao homem somente.
Se a essência da expiação é a substituição, seguem-se pelo menos duas importantes inferências, a primeira teológica e a segunda pessoal. A inferência teológica é que é impossível manter-se a doutrina histórica da cruz sem se manter a doutrina histórica de Jesus Cristo como único Deus-homem e Mediador. Como já vimos, nem Cristo somente como homem nem o Pai somente como Deus podia ser nosso substituto. Somente Deus em Cristo, o unigénito Filho do próprio Deus Pai feito homem, podia tomar o nosso lugar. Na raiz de cada caricatura da cruz jaz uma cristologia distorcida. A pessoa e obra de Cristo vão juntas. Se ele não é quem os apóstolos dizem que é, então não podia ter feito o que dizem que fez. A encarnação é indispensável à expiação. Em particular, é essencial à afirmação de que o amor, a santidade e a vontade do Pai são idênticos ao amor, santidade e vontade do Filho. Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo.
Talvez nenhum outro teólogo do século vinte tenha visto essa verdade mais claramente, ou a tenha expressado mais vigorosamente, do que Karl Barth. A cristologia, insistia ele, é a chave da doutrina da reconciliação. E cristologia significa confessar que Jesus Cristo, o Mediador, repetiu ele várias vezes, é “o próprio Deus, o próprio homem, e o próprio Deus-homem”. Há, pois, “três aspectos cristológicos” ou “três perspectivas” para a compreensão da expiação. O primeiro é que “em Jesus Cristo temos de ver com o próprio Deus. A reconciliação do homem com Deus acontece quando o próprio Deus activamente intervém”.
O segundo é que “em Jesus Cristo temos de ver com o verdadeiro homem... É assim que ele se torna o reconciliador entre Deus e o homem”. O terceiro é que, embora sendo o próprio Deus e o próprio homem, “Jesus Cristo é um. Ele é o Deus-homem”. Somente quando se afirma esse relato bíblico de Jesus Cristo, pode-se compreender a singularidade de seu sacrifício expiador. A inciativa está “com o próprio Deus eterno, que deu-se a si mesmo em seu Filho para ser homem, e, como homem, tomar sobre si mesmo esta paixão humana... É o Juiz que nesta paixão toma o lugar daqueles que deviam se julgados, que nesta paixão permite ser julgado em lugar deles”. “A paixão de Jesus Cristo é o juízo de Deus, no qual o próprio Juiz foi julgado”.
(John Stott; A Cruz de Cristo; Vida; pp. 144)
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