Adeptos da religião de cartunista assassinado defendem o chá como ligação com o ‘divino’. Psiquiatras dizem que bebida é alucinógena
Rio - O movimento intenso no número 3.046 da Estrada das Canoas, em São Conrado, indica que vai começar mais uma noite de trabalhos na Igreja Céu do Mar. Vestidas com roupas impecavelmente brancas, cerca de 200 pessoas ocupam o salão enfeitado com bandeiras e estrelas coloridas. Homens e mulheres se posicionam em lados opostos, formando um grande círculo.
No centro, uma mesa no formato de estrela sustenta um ‘cruzeiro’ e fotos dos pioneiros do Santo Daime, religião que, desde o assassinato do cartunista Glauco Villas-Boas e de seu filho, no último dia 12, tornou-se tema de debate que envolve fé e ciência.
O Santo Daime é uma das três religiões no País que utilizam o chá ayahuasca em seus rituais. Preparada com raiz e folhagem nativas da Amazônia, a bebida — cujo uso foi regulamentado pelo Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas, em janeiro — é considerada pelos fiéis instrumento sagrado de conexão com o mundo divino. Mas psiquiatras alertam que sua ingestão deve ser criteriosa, já que a ayahuasca contém em sua composição uma substância proibida pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Em foto, os bastidores da religião do cartunista assassinado em São Paulo
Daime chegou ao Rio em 1982
Responsável por trazer a doutrina do Daime para o Rio de Janeiro, em 1982, o psicólogo Paulo Roberto Silva e Souza, 60 anos, conta que a ayahuasca promoveu seu encontro com Deus: “Conheci o Daime em 1976, quando estava em Rio Branco, no Acre. A primeira vez que tomei tive uma visão celestial, um encontro com Deus. Aquilo mudou a minha vida para sempre, percebi que tinha uma missão”, afirma Paulo, que, mais tarde, voltou para o Rio e fundou a Igreja Céu do Mar, a primeira da linha do Santo Daime no estado.
Ele classifica o chá como ‘enteogênico’ e explica: “Diferentemente do que afirmam, o Daime não é um alucinógeno. Ninguém que toma o Daime vê algo que não exista. O que ocorre é que a pessoa tem a consciência expandida e entra em contato com um universo místico, estágio cientificamente chamado de enteogênico”.
O psiquiatra Erickson Furtado, da Universidade de São Paulo (USP/Ribeirão Preto), explica que não existem registros de dependência do chá. Ele alerta, no entanto, que a bebida tem, sim, uma substância alucinógena. “A ayahuasca ativa regiões do cérebro que controlam as emoções. Contém DMT, substância que, isolada, é proibida pela Anvisa. Ainda faltam estudos mais detalhados sobre a bebida. A ingestão não é recomendada para pessoas com algum tipo de distúrbio psiquiátrico, gestantes e crianças, por exemplo. No contexto religioso, a ocorrência de dano é muito improvável”, declarou o médico.
Efeito do chá tem duração de 4 horas
O psiquiatra Dartiu Xavier, especialista em álcool e drogas da Universidade Federal de São Paulo, explica que o efeito do chá ayahuasca dura aproximadamente 4 horas. “A ayahuasca é um alucinógeno que age no sistema de transmissão do cérebro, atuando diretamente nos neurotransmissores dopamina, serotonina e noradrenalina. O indivíduo que ingere o chá tem o estado de consciência alterado. Há uma contemplação introspectiva, a pessoa se distancia do que se passa ao redor e se volta para suas experiências. Alguns passam a ter alucinação. Mas não há registros de comportamento violento”.
Assassino de cartunista era adepto da religião e tinha esquizofrenia
O cartunista Glauco Villas-Boas, 53 anos, ajudou a trazer o Daime para o Sul do País. Ele fundou igreja daimista em São Paulo na década de 80. Dia 12, Glauco foi assassinado a tiros junto com seu filho Raoni, 25. O crime ocorreu no sítio onde Glauco morava e onde funcionava a igreja que ele fundou, em Osasco (SP). O assassino confesso, Carlos Eduardo Sundfeld Nunes, 24, era frequentador e apresentou quadro de surto psicótico. Após o homicídio, Carlos Eduardo fugiu até Foz do Iguaçu (PR), onde foi preso depois de trocar tiros com policiais.
O pai do assassino, Carlos Grecchi, afirmou que o filho apresentava problemas psiquiátricos, que se agravaram quando ele passou a frequentar os cultos. Em depoimento, Carlos Eduardo afirmou que pretendia sequestrar Glauco para que o cartunista fosse até a sua casa para dizer à sua mãe que o jovem era Jesus. Para a polícia, no entanto, Carlos Eduardo premeditou o crime, comprando arma e munição dias antes.
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