Enquanto a comunidade internacional procura, a todo o custo, ajudar o Haiti após o terremoto de 12 de Janeiro, Peter Hallward denuncia, no Guardian, a responsabilidade internacional na devastação económica da ilha, que deixa centenas de milhar de haitianos completamente expostos a um desastre natural de larga escala.
Port-au-Prince (Haiti), 13 Janeiro 2010. (AFP)
Um terremoto com a intensidade daquele que, em 12 de Janeiro, atingiu a capital do Haiti teria causado enormes danos em qualquer cidade do mundo. Não é contudo por acaso que uma parte tão considerável de Port-au-Prince parece agora uma zona de guerra. Boa parte da devastação causada pelo mais recente e calamitoso desastre natural é facilmente compreensível como mais uma consequência de uma horrível sequência histórica, tipicamente um produto da acção humana.
O país teve mais do que a sua quota de catástrofes. O grande sismo de 7 de Maio de 1842 matou mais de 10 mil pessoas, só na cidade de Cap Haïtien, na costa norte. Os ciclones fustigam regularmente a ilha. As tempestades de Setembro de 2008 causaram inundações na cidade de Gonaïves e destruíram boa parte das suas deficientes infra-estruturas, matando mais de mil pessoas. A amplitude total da destruição resultante deste terremoto só deverá ser conhecida daqui a várias semanas. No entanto, é já muito claro que este impacto resultou de uma ainda mais longa história de empobrecimento e perda de poder.
Haiti é o mais pobre do hemisfério ocidental
O Haiti é geralmente descrito como o "país mais pobre do hemisfério ocidental". Essa pobreza é uma herança directa daquele que talvez tenha sido o mais brutal sistema de exploração colonial da História mundial, combinado com décadas de opressão pós-colonial sistemática. A nobre "comunidade internacional", que hoje se apressa a mandar "ajuda humanitária" para o Haiti, é largamente responsável pela dimensão do sofrimento que agora pretende reduzir.
Desde que os EUA invadiram e ocuparam o país, em 1915, todas as tentativas no sentido de permitir que a população do Haiti passasse "da miséria absoluta para uma pobreza digna" (segundo as palavras do antigo Presidente Jean-Bertrand Aristide) foram violenta e deliberadamente bloqueadas pelo Governo dos EUA e pelos seus aliados. O próprio Governo de Aristide (eleito por cerca de 75% do eleitorado) foi a última vítima, quando foi deposto, em 2004, por um golpe de estado patrocinado a nível internacional, que matou vários milhares de pessoas e causou o ressentimento da maioria da população. Depois dele, a ONU tem mantido no país uma vasta força de estabilização e pacificação, cujos custos são enormes.
Centenas de milhar vivem em habitaçãoes clandestinas
Hoje, o Haiti é um país onde, segundo o melhor estudo disponível, cerca de 75% da população "vive com menos de dois dólares (1,40 euros) por dia e 56% – 4,5 milhões de pessoas – com menos de um dólar (68 cêntimos) por dia". Acordos comerciais e financeiros internacionais severos garantem que essa destituição e essa impotência continuarão, no futuro previsível, a ser um facto estrutural da vida no Haiti. Essa pobreza e essa fragilidade estão na origem da enorme escala do horror que hoje se vive em Port-au-Prince.
Desde finais dos anos 1970, os ataques neoliberais à economia rural do Haiti empurraram dezenas de milhar de pequenos agricultores para subúrbios urbanos sobrepovoados. Embora não haja estatísticas fiáveis, centenas de milhar dos residentes de Port-au-Prince vivem em habitações clandestinas sem o mínimo de condições, muitas delas empoleiradas em ravinas desflorestadas. A mistura de pessoas que vivem nesses locais e nessas condições não é, em si mesma, mais "natural" ou acidental do que a amplitude dos danos que sofreram. As infra-estruturas básicas da cidade – água corrente, electricidade, estradas, etc. – continuam a ser tristemente inadequadas e, em muitos casos, inexistentes. A capacidade do Governo de mobilizar ajuda para as vítimas é quase nula.
Na prática, a comunidade internacional tem governado o Haiti desde o golpe de 2004. Os países que agora se apressam a enviar ajuda de emergência para o país são os mesmos que, nos últimos cinco anos, têm persistentemente votado contra o alargamento do mandato da missão da ONU para além da sua finalidade militar imediata. As propostas no sentido de canalizar parte deste "investimento" para a redução da pobreza ou para o desenvolvimento rural têm sido bloqueadas, em conformidade com os velhos padrões que continuam a modelar a distribuição da "ajuda" internacional.
Se quisermos mesmo ajudar o Haiti a sair desta mais recente crise, teremos de ter em conta este ponto de comparação. Além de enviarmos ajuda de emergência, devemos perguntar-nos o que podemos fazer para facilitar a capacitação da população e das instituições públicas do Haiti. Se quisermos mesmo ajudar, temos de deixar de controlar o Governo do Haiti, de apaziguar os seus cidadãos e de explorar a sua economia. Depois, temos de começar a pagar, pelo menos por alguns dos danos que já provocámos.
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