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sábado, 18 de julho de 2009

Casamento/Divorcio - Se está acontecendo lá, pode esperar que chegará por aqui em breve...


Casamentos que a Igreja anulou.

"Não separe o homem o que Deus uniu." É esta a frase que remata o rito do casamento católico. Apesar de não reconhecer o divórcio, por considerar que, à luz da fé, a união entre marido e mulher é indissolúvel, a Igreja Católica admite que alguns casamentos não são válidos. Porque algo falhou: a vontade, a capacidade para cumprir os seus requisitos ou os propósitos da união. Para conferir nulidade a um casamento, o caso é analisado num tribunal eclesiástico, é moroso, sigiloso. E delicado, pois envolve a intimidade do casal. O DN foi conhecer três vidas assim. Uma das pessoas já voltou a casar e tem família. Porque, diz a Igreja, o seu primeiro casamento nunca aconteceu

Rita traz Joana pela mão e um sorriso rasgado no rosto. A barriga ainda discreta que se adivinha por baixo da camisa de Verão prova que a família está a alargar-se e, à menina de dois anos, virá juntar-se em breve um irmão. Foi com este projecto de família e de união para a vida inteira que Rita e João se comprometeram em Março deste ano. Na hora do casamento, lembra Rita, "tive a convicção de que estava a fazer algo para o resto da vida". Como prevê a Igreja Católica, a selar um contrato com Deus, não anulável, e resumido na expressão com que o padre remata o rito: "Não separe o homem o que Deus uniu."

Para poder receber o sacramento do matrimónio, no qual os católicos crêem que Deus valida de forma indissolúvel a união do casal, Rita teve de provar que o mesmo gesto que fizera sete anos antes não fora válido. Que o seu primeiro casamento realizado na Igreja, com Daniel, foi nulo, porque não assentou nos ideais- -base do matrimónio cristão: casar para toda a vida e constituir família. Através de um tribunal eclesiástico, que analisou o caso ao longo de vários meses, ficou demonstrado que o contrato estava, à partida, viciado. Apesar de na altura ter pronunciado as mesmas palavras de amor eterno, interiormente, Rita nunca quisera assumir uma relação para sempre. Nem tão- -pouco desejara ter filhos.

A Igreja não reconhece o divórcio, considerando o compromisso assumido entre homem e mulher o reflexo da relação de Deus com o homem, que é indissolúvel, eterna e geradora de vida. Mas através dos processos de nulidade matrimonial, que correm em tribunais específicos das dioceses, e cada vez com maior frequência, admite que muitos casamentos não são válidos. Não existiram, pois uma das partes não estava em condições de dizer o "sim". À luz do direito canónico, há várias causas de nulidade, que encaixam nestas ideias gerais: um dos dois não casou por vontade própria, não possuía capacidades psíquicas para assumir o compromisso, ou excluiu à partida um dos princípios basilares da união.
"Eu disse sempre que não queria ter filhos. Mas ele pensava que eu ia mudar de ideias", recorda Rita, advogada de 31 anos, recuando ao ano em que conheceu Daniel, o rapaz giro e bem-disposto com quem casaria após um ano de namoro. "Nem sei bem porquê. Talvez por ser nova e ter um feeling que aquilo não seria para sempre. E que, se tivesse filhos, se tornaria irreversível. O que me prendia para a vida, eu rejeitava", explica. Tinha 24 anos e uma educação religiosa, mas a vida espiritual ficara para trás, no colégio de freiras.

Por sua culpa, diz, casaram na igreja, embora ele nem fosse baptizado. "Achava que tinha de ser assim. E ele baptizou-se para me fazer a vontade. Não foi uma decisão madura. Foi uma experiência", conta, lembrando que nem teve noção das implicações da decisão. "Não demorei a perceber que tinha feito asneira…" A questão dos filhos tornou-se uma guerra. "Ele queria, eu não. O tempo só veio acentuar as diferenças." Atrás desta reticência vieram inseguranças e ciúmes. Ao fim de três anos de enorme desgaste e sofrimento para ambos, ganhou coragem. "Fiz a mala e fui para casa da minha mãe. Sabia que estava a dar um passo atrás para dar dois em frente", diz, sublinhando que esta já foi uma atitude ponderada, pois não queria separar-se "com a mesma leviandade" com que casou.

Só mais tarde, quando conheceu João, católico fervoroso, Rita tomou consciência do que, à luz da fé, significava ser divorciada. "Foi muito difícil de gerir. Os valores dele estavam de pernas para o ar, ao ponto de ter de escolher entre mim e a religião", recorda Rita, que, pela mão do novo namorado, se reaproximava agora da Igreja. Foi num retiro, onde foi parar sem saber bem como, que se iniciou a conversão. "A brincar, dizia que eram os amigos da hóstia. Mas a verdade é que renovei o que parecia perdido. Fui a surpresa desse encontro, um milagre, dizem", recorda, sorrindo.
Ao padre que orientava o retiro, desbobinou a história da sua vida, e este falou-lhe da hipótese de o seu casamento ser nulo. "O João ficou contente, pois assim eu poderia voltar a casar. Embora tudo isto não fosse o maior orgulho da vida dele…" A ideia ganhou consistência e um dia decidiu ir ao Patriarcado de Lisboa, de onde trouxe um inquérito para reflexão. "Fui para casa e escrevi 30 páginas com a história toda." Daí foi extraído o libelo, o documento que dá entrada do processo no tribunal. "Como sou advogada, tratei de tudo", diz Rita, que durante esse período fez uma especialização em direito canónico.

Antes que o ex-marido fosse notificado pelo Tribunal de Viseu, onde acabou por vir a correr o caso, Rita contou-lhe a sua intenção. "Não gostou muito da ideia, mas colaborou. No depoimento disse que para ele o casamento era para sempre. E que eu é que não o tinha respeitado", afirma, reconhecendo que as suas palavras duras até lhe foram favoráveis, pois comprovaram que a união estava viciada. Além de Daniel e Rita, foram ouvidas testemunhas que confirmaram o estado de espírito na altura do casamento: a exclusão dos filhos por parte dela e a imaturidade. Outra pessoa testemunhou a mudança radical na forma de encarar o casamento e o desejo de constituir família.

Prova disso foi o nascimento da filha, ainda antes de sair a sentença. E a vida religiosa, praticada agora com devoção. Ansiosos pela confirmação da decisão, Rita e João não casaram a 28 de Dezembro, dia da Sagrada Família, como tanto desejavam. Fizeram-no dois meses e meio depois. Com a igreja cheia e três padres no altar.

Alda nunca pensou repetir o gesto realizado há mais de 40 anos na Igreja do Algueirão, em Sintra, apesar de ter tido mais cinco maridos depois de Toni. Com quatro dos quais chegou mesmo a casar, não pela Igreja, apesar de a nulidade do seu primeiro matrimónio ter sido confirmada poucos anos após a separação. "O casamento é uma coisa íntima que não tem de ser sacramentalizada", afirma hoje, aos 62 anos, sem espécie de dúvida sobre o assunto.

Na altura, "casei porque era assim que as coisas se passavam. Só se não se gostasse nada é que não se casava. Era normal. Havia um medo reverencial e as meninas eram muito obedientes", explica Alda Cravo Saúde, jornalista e poeta, rindo. A história remonta a 1963 e a Luanda, onde, então menina de 18 anos, Alda namorava Manuel, com quem já tinha casamento marcado. Quinze dias antes, uma fatalidade alterou o destino. "Ele ia sempre lá a casa ao final do dia. Nesse dia não apareceu. Liguei para a base e, dois dias depois, soube que o avião onde viajava fora abatido", recorda, ainda com memória desse trágico dia. O desgosto foi enorme. "O mundo desabou em cima de mim."

Viúva antes de o ser, e findo o sétimo ano escolar, Alda regressou a Portugal. Por trazer coisas de Manecas, como era tratado Manuel, entre as quais os documentos de um carro velho, Alda e os pais encontraram-se com a família do falecido noivo. Toni era irmão de Manecas e foi nesse encontro em que o conheceu que também lhe escutou uma enigmática frase: "Disse--me que eu era a única memória do Manecas. E que talvez um dia viéssemos a conversar."

Alda era ainda uma menina à guarda dos pais e, sem se dar conta, Toni passou a ser visita da casa. "Quando descobri, estava a namorar, e, seis meses depois, pronta para casar", recorda, exibindo a fotografia a preto e branco, onde aparece vestida de noiva.

"Nunca fui de estereótipos. Já na altura se percebia isso", conta, lembrando as reticências que pôs em vestir-se de noiva a rigor. Pouco tempo após casar, já estava farta de responsabilidades como arrumar a casa ou servir o jantar à sogra. A estas reclamações, Toni respondia: "Isso é verdura."

Foi ela a primeira a reconhecer a precipitação do casamento e a querer "ir à vida". "Queria sair do quintal e não acabar como os meus pais que, depois do trabalho, chegavam a casa, calçavam as pantufas e iam para a cama", recorda, com um brilho nos olhos carregados pela pintura negra. Tinham passado três anos e Toni concordou que cada um devia seguir o seu caminho. Mas como para voltar a casar queria que fosse pela Igreja, dados os antecedentes de seminarista, tratou do processo de nulidade no Patriarcado, onde tinha relações privilegiadas.

Do processo em si, Alda pouco se recorda. Apenas que a chamaram a depor num ambiente constrangedor. "Era uma sala de audiências como num tribunal, com um Cristo enorme. Os juízes tinham um ar sinistro, fizeram-me sentir altamente culpada." À pergunta sobre porque casara feita pelo tribunal, respondeu com a vontade dos pais. Toni, na mesma linha, justificou com dramatismo: "A mãe tinha tido um AVC quando soube da morte do filho. Ele disse que casou comigo para não lhe dar mais um desgosto. E porque, para ela, a única memória viva do Manecas era eu."

Ainda hoje, Alda não sabe se terá sido essa a motivação, mas a questão também não a preocupa. A nulidade foi sustentada no medo reverencial em relação aos pais. Uma sentença que, para ser validada, os obrigou ainda a ir a Roma, onde, perante um representante do Papa Paulo VI, voltaram a expor os factos.

De volta ao estado anterior ao casamento, solteira, Alda passou novamente a casada. Não sem antes ter sido mãe de Sílvia, sua única filha, fruto da relação com um homem com o qual, curiosamente, nunca casou. Do terceiro casamento desfez-se rapidamente, seguindo para a Índia, onde voltaria a casar com um professor de música, segundo o rito hindu. A quinta cerimónia de casamento foi na Argélia, com um tuaregue, numa viagem que acabou por se estender por quatro meses.

Após mais um relacionamento conturbado, do qual prefere não falar, Alda apostou em força na carreira de jornalista e de escritora, passando pela famosa "Crónica Feminina", e contando agora várias obras publicadas. Hoje, aos 62 anos, mantém a jovialidade que lhe adivinhamos do antigamente. Estado civil: comprometida.
Aos 33 anos, Cristina já viu o seu estado civil de casada transformar-se em divorciada. Mas, para a Igreja, ainda continua casada. Porque o seu processo de nulidade ainda corre, prefere resguardar-se num nome fictício. Embora acredite que não será difícil provar que nos cinco meses em que esteve casada, em 1999, não houve sequer casamento.

António, o ex-marido, nunca se comprometeu realmente com uma união para a vida inteira, diz Cristina. E quando o verbalizou na igreja já tinha dúvidas de que o quisesse fazer, acrescenta. "Hoje, acho que ele casou só porque não me queria decepcionar, nem aos pais", conta, responsabilizando-se também pela sua "ingenuidade" que não lhe permitiu ver isso, nem que o marido andava cada vez mais "ausente".

O namoro de quatro anos não lhe deixou dúvidas nem preocupações. "Para mim estava tudo bem. Parecia-me que ele queria casar, mesmo não sendo católico." Cristina sempre foi ligada à fé, andou na catequese, no grupo de jovens e ia à missa com regularidade. Do curso de preparação para o matrimónio que fizeram antes de casar diz não retirado grande novidade, pois tudo o que lá ouviu já sabia.

O facto de António não a acompanhar na prática religiosa, nem sequer se ter envolvido na preparação do casamento, não lhe causou preocupação. "Nem fomos juntos marcar a data, tive de ir com a minha mãe. Se fosse hoje, acharia isto estranho... Mas estava tão entusiasmada que me distraí", reconhece. Hoje, Cristina interpreta este esquivar e a desculpa frequente do trabalho como uma dificuldade em assumir o compromisso. "Acho que ele já estava com dúvidas. E o facto de não se envolver, inconscientemente, era uma forma de não avançar."

Mas avançou e no dia do casamento há até quem diga que "ela estava mais feliz do que ele". Cristina não confirma. Mas diz que se aplicou ao máximo nas tarefas domésticas, e em agradar ao marido, que teimava em trabalhar demais. "Estava demasiado preocupada com a nova rotina. Hoje, acho que até fui um bocado chata a impor regras na casa", confessa. "Ele não me parecia bem. Eu perguntava-lhe o que se passava e ele dizia que era cansaço. Eu achava que era só uma fase e que tudo iria melhorar."

A fase terminou no dia em que António disse já não gostar dela como pensava. Aos cinco meses, tudo desabou. Ainda nessa noite, Cristina confirmou através do telemóvel do marido o porquê das suas ausências e da desculpa constante do trabalho. "Liguei para aquele número e confirmei que era uma mulher…", conta, sublinhando a frustração que sentiu nesse momento.

Assim que se separaram, Cristina disse que ia pedir a nulidade, pois, sendo crente, queria ter a possibilidade de reconstruir a vida. Mas só cinco anos depois, e após a conversa com um padre, deu entrada com o processo no tribunal eclesiástico. Na base da prova que vai tentar fazer está uma conversa sigilosa entre António e uma amiga, logo após a separação, a quem este confirmou as dúvidas em relação ao casamento e a falta de coragem para o travar. Se esse testemunho for validado pelo tribunal, poderá ficar provado que o contrato estava, à partida, viciado. E que pode ser nulo.

Cristina sabe que a traição não provará a nulidade, pois ao tribunal cabe avaliar as condições em que ambos estavam na altura de dizer o sim e não tanto o que ocorreu depois. O parecer da psicóloga que acompanhou António após o divórcio ajudará a comprovar um distúrbio psicossocial agudo. Até lá, resta esperar.


D.N.

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