Em 13.03.03 por Ulisses Capozzoli
“Vão se os anéis, ficam os dedos”.
Esse surrado ditado popular aparentemente foi adotado pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) para amenizar o mal-estar com a excomunhão da garotinha de 9 anos violentada e engravidada de gêmeos pelo padastro, em Pernambuco.
A garotinha foi submetida a um aborto, com concordância da mãe, temor dos médicos que fizeram a cirurgia de que ela não suportasse a gravidez, e proteção da lei que prevê esse procedimento em caso de estupro.
O arcebispo de Olinda e Recife, Dom José Cardoso Sobrinho, que praticamente fez a excomunhão, ao justificar que ela está prevista no direito canônico, teve respaldo de outras autoridades eclesiásticas que deram idêntica justificativa.
O presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, que criticou a decisão teve resposta dura de Dom José Cardoso Sobrinho, para quem “Lula não é um bom católico”. Ele recomendou ainda que o presidente consultasse sua assessoria antes de opinar sobre temas que cabem ao direito canônico.
Nos telejornais de ontem, no entanto, membros da CNBB amenizaram que a excomunhão ainda não ocorreu, sugerindo que possa não ser declarada formalmente.
O caso da garotinha excomungada por Dom José Cardoso Sobrinho está repercutindo em toda a imprensa internacional.
Agora, se mudarem de idéia, como os bispos irão justificar que não estão considerando o direito canônico?
Em seu último livro, O Mundo Assombrado pelos Demônios, o astrônomo e divulgador de ciência americano, Carl Sagan, lamentou a impotência da ciência em sensibilizar a natureza humana para consciência e tomada de posição levando em conta critérios de racionalidade e humanismo, entre outros.
Aparentemente Sagan continua com a razão, mesmo depois de uma década de sua morte.
História e vida cotidiana
Em 12/03/2009 por Ulisses Capozzoli
O caso da mãe, médicos e a garotinha de 9 anos, excomungados pelo arcebispo de Olinda e Recife, Dom José Cardoso Sobrinho, a propósito de um aborto, se destaca mesmo das previsões mais pessimistas de crise econômica e ambiental para indignar as pessoas.
E enquanto houver indignação há motivos de esperança de que ordenamentos, atitudes, comportamentos ou o que seja, de conteúdos desumanos, possam ser revertidos.
Apenas para não deixar dúvida, o caso envolveu o padastro de 23 anos que abusou sistematicamente da garotinha de 9 anos e de sua irmã com problemas mentais e engravidou a menina de gêmeos.
Os médicos analisaram o caso. Concluíram pelo aborto como forma de salvar a vida da garotinha e tiveram a concordância da mãe.
O arcebispo, no entanto, com base no que pensa a igreja católica, excomungou a todos os envolvidos (incluindo a garotinha, agora duplamente vitimada).
O estuprador? Bem, o estuprador ficou de fora.
Excomunhão, a esta altura do século 21, certamente só não é um anacronismo completo porque há quem considere que ainda tem alguma importância. Mas a decisão ortodoxa, desumana e irreal do bispo, lastreada na legislação canônica, pode ajudar a atirar uma pá de cal sobre esse anacronismo medieval.
Ao longo de toda a Idade Média, quando uma noite de séculos desceu sobre o mundo ocidental, a igreja cristã se auto-intitulou ordenadora do mundo.
Com a Reforma, motivada especialmente pela venda de indulgências, o que hoje seria chamado de pura corrupção, as coisas começaram a mudar. Mas lentamente.
A Reforma, mesmo, não pode ser interpretada fora do contexto da impressão aperfeiçoada por Gutenberg, com a adoção de tipos metálicos móveis, a partir de uma prensa de uva para produção do vinho.
O sistema de Gutenberg popularizou a Bíblia e tirou sua interpretação de centros de poder religioso para disseminá-la por amplas faixas da população medieval.
Estava, assim, criado o ambiente para a ruptura.
Na Península Ibérica, onde a Contra-Reforma incorporou a brutalidade, a Inquisição, o “Santo Ofício” matou e torturou um número desconhecido de pessoas.
Na Itália, mesmo Galileu, a quem homenageamos em 2009 pelos 400 anos do uso astronômico do telescópio, escapou da repressão.
Galileu teve que abjurar o que havia observado no céu, sob pena de ser “posto a ferros”, ou seja, torturado.
A excomunhão da garotinha violentada pelo padrasto e castigada com a excomunhão pela igreja, num caso que está repercutindo no mundo inteiro, é uma evidência de que, de muitas maneiras, a longa noite da Idade Média ainda não se desfez.
Em alguns casos ela continua tão espessa que nenhuma luz se mostra.
Mesmo das estrelas mais luminosas, da ciência e do pensamento humanista.
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